Matéria publicada no Le Mond em 16.01.2014 | Por Jérôme Fenoglio

Tradução: Miriã Granato para o Studio Ghibli Brasil – [email protected]
Pesquisa: Amanda Rotta – [email protected]
 
Quantos conheceram parecida devoção? Quantos acumularam ainda vivos, a adulação de seu povo, o sucesso invariável de suas obras, o reconhecimento de seu talento além das fronteiras que o viram crescer, a responsabilidade de encarnar sua arte inteira? Fixando-nos em sua barba branca, não podemos evitar pensar que há em Hayao Miyazaki alguma coisa de Victor Hugo, que acabou instalado, no topo de sua glória, em uma avenida que carregava seu nome.

4349172_5_275e_hayao-miyazaki-le-maitre-japonais-de_c2ce19a3ac2fc600a5de0875b5ba8dc2Foto: Divulgação

Aos 73 anos, o mestre não pede por tantas honras. O patriarca do anime, o filme de animação japonês, nos recebe sem solenidade em seu atelier pessoal. Uma casa toda em madeira, situada a algumas dezenas de metros do Studio Ghibli, tranquila, tal como um vasto chalé de parque americano, na imensidade da periferia oeste de Tóquio. Do lado de fora, um sopro faz as grandes árvores estremecerem. Do lado de dentro, a umidade das lenhas faz as chamas do forno, que ele alimenta regularmente, vacilarem. A inquietação faz as frases, que ele pronuncia fumando pensativamente na borda da mesa, arrepiarem.

Hayao Miyazaki fala sobre seu décimo primeiro e ultimo longa-metragem “Vidas ao Vento”, que será lançado no Brasil na próxima sexta-feira (28 de fevereiro), seis meses após o anuncio de sua aposentadoria na frente de 600 jornalistas e de uma nação abalada. Ele evoca o contexto histórico do filme – os anos 1920 e 1930, a depressão econômica, a ascensão em direção à guerra de expansão de um Japão sob o jugo dos militares – para logo associa-lo à atualidade: a sobrelicitação nacionalista dos Estados ribeirinhos do mar da China, a corrida ao rearmamento, os efeitos da crise financeira, as gesticulações ideológicas e as manipulações contábeis do primeiro ministro Shinzo Abe. “Há tantas semelhanças entre os dois períodos, que é assustador”, ele constata. “Poderíamos dizer que as condições se estabelecem, pouco a pouco, para um novo desastre”.

Mesmo jurando que ele não tenha feito de propósito e que o local de “Vidas ao vento” tenha sido lançado há mais de cinco anos, Hayao Miyazaki vem mais uma vez antecipar a época. E é justamente esse gênio que ele compartilha com o autor dos Miseráveis, esse dom de ressentir as convulsões subterrâneas de seu tempo, de revelar por meio de “obras-rios” as correntes que atravessam as nações.  

 

FICÇÕES ADAPTADAS A COMPLEXIDADE DA ÉPOCA

No Japão, cada geração é marcada pela ficção que lhe abriu, quando criança, o universo de Miyazaki. “Para mim, como para muitos quarentenários, foi “Nausicaä do Vale do Vento”, o quadrinho, e depois o filme que saiu em 1984. Trinta anos mais tarde, eu continuo a me perguntar o que a heroína faria no meu lugar, se ela fosse confrontada as minhas escolhas”, explica Izumi Shimada, executivo na sede de uma multinacional em Tóquio. Desde esse longa-metragem, tudo estava no lugar. A floresta tóxica lançava o tema ecológico de uma natureza sagrada, incompreendida e ameaçada pelos humanos. A princesa Nausicaä abria uma linha de heroínas que, de filme em filme, pontuaram o engajamento feminista de Miyazaki e corroeram a dominação masculina.

Os filmes seguintes, cheios de kamis, esses espíritos de aparências e consistências variadas, coincidiram com o retorno do interesse dos jovens japoneses pelo shinto, o culto animista das origens do arquipélago. Sem que se possa realmente discernir quem lançou esse movimento: a sociedade nipônica ou os triunfos públicos do cineasta?

Mesmo no ocidente, onde esses desenhos animados chegaram tarde, o cineasta não perdeu o compromisso com a história. No fim dos anos 1990, a partir de “Princesa Mononoke”, seus filmes foram distribuídos em uma desordem misturando obras inéditas e antigas. Nesse caos, os pais e as crianças do pós-muro de Berlim, e particularmente os franceses, cansados do maniqueísmo da guerra fria e dos desenhos animados da Disney, elegeram as ficções livres de todo simplismo, mais adaptadas à nova complexidade da época.

As obras de Miyazaki eram percorridas de conflitos, de forças e de personagens ambivalentes de angústias saturadas pelos sonhos, mas acabavam sempre bem. Gravadas antes do 11 de setembro de 2001, elas pontuaram o fim de um parêntese encantado, no qual se podia acreditar que a história seria escrita de outra maneira.  

 

UM ENGAJAMENTO ECOLÓGICO RADICAL

Hayao Miyazaki teria gostado de permanecer, assim como Victor Hugo, como um autor de um século só. “Eu sou um homem do século XX”, suspira ele. “Eu não teria gostado nem um pouco de ter alguma coisa a ver com o século XXI”. Mas eis que foi necessário mudar de milênio e o visionário teve que assistir à realização de suas profecias. Desde 2008, “Ponyo”, deixava entrever as destruições do tsunami que ia atingir, três anos mais tarde, o Japão.

Em março de 2011, a catástrofe da central de Fukushima-Daiichi transformava brutamente em realidade quotidiana todos os medos que as ficções do mestre tinham tentado conjurar. “Vidas ao Vento”, que comporta uma descrição impressionante do grande terremoto precedente, o da região de Tóquio em 1923, carrega a marca dessa catástrofe. A gravação do filme foi interrompida durante vários dias, com as equipes bloqueadas no Studio Ghibli. Miyazaki considerou parar com tudo antes de retomar o curso de uma obra que só se tornou mais escura, mais desabusada.

O desastre também radicalizou seu engajamento ecológico. O cineasta encontrou a virulência do antigo sindicalista dos estúdios Toei do início de sua carreira, acostumado à retórica marxista, para condenar a energia nuclear. Mas como para ele, a estética nunca de afastou da política, os eventos também o convenceram que era necessário se impregnar, antes da queda, dos esplendores do mundo. “Tudo era tão bonito, tão harmonioso, antes da catástrofe”, ele diz mostrando uma fotografia da natureza tirada dias antes do terrível 11 de março.  

 

O ARQUIVISTA DAS BELEZAS D’OUTRORA

Nesse momento da entrevista, como pego subitamente pela energia que faz saltar suas criaturas quiméricas, o novo aposentado se levanta para se lançar na escada de lenha que conduz a seu mezanino. Ele desce de lá com um álbum de fotografias cheio de clichês. “Após a falência da Lehman Brothers e o inicio da crise financeira no final de 2008, eu já estava convencido que o mundo havia atingido um ponto de mudança. Durante dois meses fotografei tudo o que me cercava para fixar as coisas antes que elas fossem mudadas”.  

Em cada uma das páginas que ele vira sorrindo, oito Polaroids são cuidadosamente coladas compondo um relevo exaustivo da vida domestica de um sênior como tantos outros que encontramos no Japão: sua casa e a visita de seus netos, seus vizinhos – “esse aqui perdeu a cabeça” -, seus comerciantes – “essa aqui morreu”-, seus trajetos até o estúdio em seu mítico Citröen 2CV de automobilista econômico e francófilo, sua comida, as árvores assim como seus domingos passados a limpar, como voluntário, o rio da vizinhança.

“Tudo isso não levou a nada”, ele conclui. “Mas eu o guardo, nunca se sabe”. Hayao Miyazaki conhece a rapidez com a qual se apagam os detalhes que fazem manter uma vida e uma sociedade. Para “Vidas ao Vento”, ele teve muita dificuldade para encontrar os gestos, as maneiras de se vestir, as entonações da tradição japonesa pré-guerra. Ele se tornou dessa forma não somente o sismógrafo das catástrofes que ameaçavam o seu tempo, mas também o arquivista que retém a beleza das coisas d’outrora.

Leia: A Última Profecia de Miyazaki – Parte II