Com a perda de Isao Takahata no dia 5 de abril, foi realizada pelo Studio Ghibli uma cerimônia de despedida ao seu diretor e cofundador no dia 15 de maio no Museu Ghibli, em Mitaka, Tóquio.
Hayao Miyazaki, que presidiu a cerimônia e com quem Takahata dividiu anos de carreira na animação, realizou a leitura de um texto escrito em homenagem ao seu amigo, relembrando memórias do tempo em que se conheceram e do período da Toei Animation, durante a produção de filmes.
Confira aqui o discurso de Hayao Miyazaki na íntegra traduzido integralmente do japonês.
Tradução para o português por: Yákara “Kushina” Santos.
“Nós chamávamos o diretor Takahata de Paku. Vou contar a história deste apelido. Não posso afirmar que é tudo verdade, mas na maioria das manhãs ele era um homem desagradável: quando começou o serviço na Toei Animation, estava sempre com pressa, fazendo tudo rapidamente, chegando sempre na última hora. Assim que batia o ponto, já começava a devorar o pão, e então bebia estabanadamente a água direto da torneira.
(OBS: essa ação de comer ou beber qualquer coisa de forma apressada ou estabanada é expressada pela onomatopeia “paku-paku” na língua japonesa). Então por causa disso, passamos a chamá-lo de Paku.
Não está escrito na forma de um discurso memorial, mas gostaria de ler o que escrevi:
Paku estava convencido de que iria viver até os 95 anos. Infelizmente, faleceu antes disso. Isso me faz considerar o meu próprio tempo limitado.
Há nove anos, nós recebemos o telefonema do nosso médico, que disse: “se vocês são mesmo amigos do diretor Takahata, façam-o parar de fumar”. Ele estava com uma voz muito séria e assustadora. A intensidade do médico nos assustou, então Susuki e eu sentamos com o Paku e falamos sobre corrigir essa atitude, pela primeira vez. Eu disse: “Paku-san, por favor, pare de fumar.” E Suzuki: “Pelo trabalho, por favor, pare.” Dito isso, fiquei esperando por justificativas, objeções, ofensas, quando ele só respondeu: “Muito obrigado! Eu vou parar de fumar.” Ele disse de forma clara enquanto erguia a cabeça. E então ele realmente parou de fumar.
Eu fumava ao lado dele de propósito e ele dizia “eu gosto do cheiro, mas não tenho mais vontade de fumar”. Depois disso, eu realmente pensei que ele era alguém que viveria até os 95 anos.
No ano de 1963, quando Paku tinha 27 anos e eu 22, nos encontramos pela primeira vez. Lembro até hoje das primeiras palavras que trocamos naquele dia.
Era fim de tarde e eu estava esperando o ônibus que vai para Nerima. As poças d’água da chuva ainda estavam acumuladas e, então, um jovem se aproximou. “Parece que você vai para a casa do Sr. Takuo Segawa, não é?!”. Em frente aos meus olhos estava um jovem de rosto gentil e inteligente. Este era Isao Takahata. Foi o momento do meu encontro com o Paku.
Hayao Miyazaki e Isao Takahata
Apesar de ter sido há 55 anos, me lembro com muita clareza. Me recordo muito vividamente do rosto do Paku naquele momento. A família do Takuo Segawa era patrocinadora de um grupo de teatro de marionetes (Taroza) e eu tomei a responsabilidade de chamá-lo para uma palestra no nosso local de trabalho.
A próxima vez que me encontrei com o Paku foi em um trabalho conjunto no Sindicato do Trabalhadores da Toei Animation. Ele era vice-presidente do sindicato e eu fui nomeado secretário. Ali começaram dias de tensão. Apesar disso, virávamos a noite no prédio do sindicato. Nós passávamos as noites conversando sobre sonhos e devaneios. Sobre qualquer coisa. E entre elas, sobre fazer filmes. Nós não estávamos satisfeitos com o trabalho. E muito mais que isso, nós queríamos fazer algo que nos desse orgulho. O que seria?
Desculpem-me… (se emociona)
O talento de Paku era imenso. Eu estava feliz de ter me encontrado com essa pessoa tão desafiadora. Naquela época, eu era um novato na equipe de Yasuo Otsuka. Eu tive sorte de encontrar ambos. Otsuka foi quem me ensinou sobre a diversão em produzir animações. Naquele dia, ele me mostrou documentos confidenciais. Isso é secreto.
Perdão… (se emociona)
Era um pedido ao sindicato “Para Yasuo Otsuka supervisionar a direção de arte de um longa metragem, a produção deve ser de Isao Takahata”. Naquela época, usava-se o termo “produtor” para se referir ao que hoje chamamos de “diretor” na Toei Animation.
Hayao Miyazaki e Yasuo Otsuka
Paku e Otsuka tinham uma conexão. Fervilhava um sentimento de entusiasmo muito intenso. Então esse dia chegou. Foi decidido que Hórus: O Príncipe do Sol, o décimo filme do estúdio, seria feito com a parceria de Takahata-Otsuka.
Naquela noite, fui chamado a casa de Otsuka. Paku já havia chegado. Otsuka estava sentado à mesa e Paku estava deitado no tatame, como fazia no prédio da União. Eu também me deitei. Quando a esposa do Otsuka trouxe o chá, eu rapidamente me levantei, mas o Paku continuou daquele jeito e só disse um “obrigado”. Entre as mulheres da equipe, o Paku não era popular por causa dessas maneiras.
Otsuka disse: “A oportunidade de fazer tais longas-metragens não aparecerão facilmente. Haverão muitas dificuldades. O período de produção será estendido, e é esperado que isso seja um problema, mas vamos nos preparar e conseguir”. Aquilo, mais que uma “consolidação de intenções”, parecia o anúncio de um discurso secreto de uma “rebelião”. Desde o início eu não tive objeções.
De qualquer maneira, eu era apenas um animador iniciante, que ainda nem tinha chegado ao cargo de animador-chave. Otsuka e Paku pareciam ter compreendido melhor que eu a dificuldade da situação.
Fomos nos envolvendo mais e mais na dificuldade de produzir o décimo longa-metragem. Os funcionários não estavam habituados com a nova direção. O trabalho foi adiado e toda a empresa acabou sendo envolvida. A persistência do Paku era sobre-humana. Ele implorava para os responsáveis da empresa e Otsuka também persistia.
Eu ia trabalhar nos dias de folga durante o verão com o ar condicionado quebrado e desenhava croquis de cenários em grandes folhas. O sindicato não permitia o trabalho nos fins de semana, mas nós não nos importávamos com isso. Estava tudo bem, era só não bater o ponto. Eu aprendi muito com esta produção.
Quando terminei de assistir a primeira edição, não consegui me mover. Fui derrubado pela surpresa e um choro emocionado. Eu estava sabendo do debate entre tirar ou não a cena da “Floresta encantada”. O Paku foi muito perseverante na negociação com a empresa. Vários compromissos com relação a cortes, contagem de desenhos, número de dias para finalizar, que no fim o Paku acabou não cumprindo.
Cada vez que ele não cumpria alguma das exigências, tinha que escrever uma carta de desculpas. Eu me pergunto quantas daquelas cartas ele teve que escrever. Eu também estava com as mãos cheias de trabalho e não tinha tempo livre para me aproximar do Paku durante esses períodos difíceis. Otsuka também aguentou reclamações e ameaças enquanto tentava lidar da melhor forma possível com esses cortes que eram feitos.
Na pré-exibição, foi a primeira vez que eu vi a cena da heroína Hilda na Floresta de Ilusões. A fotografia era de um grande veterano, o Yasuji Mori. Era uma expressão extraordinária. O quão forte era aquele desenho. O quão gentil era… Foi com isso que eu comecei a entender o que Paku queria criar. Ele tinha chegado até o fim. Yasuji Mori também tinha finalizado um trabalho sem igual. Otsuka e eu o apoiamos.
Mais de 30 anos depois da estreia de Hórus: O Príncipe do Sol, no ano 2000, o Paku reuniu as pessoas envolvidas na produção do longa. Desta vez, como a pessoa responsável pela empresa, com os diretores executivos, as pessoas da gestão intermediária que sofreram entre a cena e a empresa, o avanço da obra, a equipe de desenho, de traços de cenário, as moças da colorização, a equipe técnica, de fotografia, de efeitos sonoros, de edição, vários se juntaram neste dia. Até mesmo de cargos que não existem mais, como a pessoa encarregada do xerox, rostos familiares apareceram. As pessoas celebravam e diziam: “aquele período foi o mais divertido”. “Hórus: O Príncipe do Sol” não foi bem na indústria do entretenimento, mas não estávamos preocupados com isso.
Paku e eu vivemos intensamente aquele período. Aprendemos com Paku essa atitude de quebrar barreiras.
Muito obrigado, Paku, há 55 anos… por ter vindo falar comigo naquele ponto de ônibus ainda molhado da chuva. Nunca me esquecerei. ”
Hayao Miyazaki.
Fonte: Huffpost