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Mahito, o protagonista de “O Menino e a Garça” Divulgação/Studio Ghibli

Após 10 anos do seu último longa, pudemos presenciar durante duas horas aquela que tem sido dada como a última animação de Hayao Miyazaki, e a qual consideramos uma das obras mais fantásticas e maduras do diretor.

É difícil descrever como foi a experiência de assistir novamente a um filme de Miyazaki em uma tela grande. Desta vez, isso aconteceu no último domingo (4) quando estivemos na première de O Menino e a Garça. A exibição do mais recente longa do Studio Ghibli aconteceu no Sato Cinema, localizado no prédio do Museu da Imigração Japonesa (Bunkyo) em São Paulo.

O início se dá com Mahito, o nosso protagonista, passando por cenários tortuosos de um fogo que toma conta do hospital onde sua mãe se encontrava, numa belíssima sequência animada dos movimentos borrados de Mahito correndo que dão à cena um tom de tristeza e desespero.

Situado na Segunda Guerra, Mahito e seu pai, Soichi, são forçados a se mudar de Tóquio para o campo. O longa aqui parece referenciar obras como Túmulo dos Vagalumes (1988), com o traço artístico da cena da fuga de O Conto da Princesa Kaguya (2013), ambas de Isao Takahata, falecido diretor e cofundador do Studio Ghibli.

“O Menino e a Garça” Divulgação/Studio Ghibli

O filme tem um tom bastante misterioso e autobiográfico, não tendo pressa de nos explicar nada. Na verdade, o filme todo parece um ode de Miyazaki às suas raízes e inspirações. O próprio Mahito parece ser o jovem Miyazaki, já que o pai do protagonista trabalha em uma fábrica de aviões, assim como o pai do diretor, e sua mãe esteve internada durante sua infância em um hospital devido à tuberculose.

O garoto é abordado, a partir de sua chegada à nova casa, por uma garça cinzenta que o convida a segui-la. A garça é uma presença que traz um incômodo à Mahito, que o desafia constantemente, desviando sua atenção do seu novo cotidiano e o instigando a adentrar num universo fantástico a ser desbravado.

Mahito é um jovem que lida com o luto e tenta entender como lidar com sentimentos conflitantes, tendo que se adaptar ao novo lar, no qual seu pai está agora casado com a irmã da sua falecida esposa que está grávida, e com um ambiente no qual tudo lhe é estranho.

“O Menino e a Garça” Divulgação/Studio Ghibli

Dentre estes sentimentos, Mahito parece encarar tudo com pessimismo. No entanto, nesse universo, é como se ele adentrasse dentro de si mesmo. Essa passagem para o desconhecido é representada pelo diretor quase sempre por meio de um túnel, que aqui, ao atravessar, ele conhece o seu tio-avô. A partir de então, a história do presente se mescla com o passado.

Durante a jornada, ele conhece Kiriko e Himi, personagens com as quais Mahito desenvolve uma relação positiva de confiança e amizade. As mulheres, como em todos os filmes de Miyazaki, possuem personalidades fortes e liderantes, sendo fios condutores para a narrativa.

O filme passa de tons de melancolia à momentos cômicos com muita leveza, principalmente envolvendo a garça-cinzenta e, posteriormente, os periquitos australianos e as cegonhas. As aves são figuras recorrentes durante todo o filme, representando uma espécie de transcendência e liberdade.

O vento, elemento presente em todos os filmes de Miyazaki, geralmente simbolizando mudança e transformação, é também importante em O Menino e a Garça, assim como o fogo. Esse segundo elemento representa tanto a morte, purificação, transformação, quanto o renascimento. Neste filme, o fogo expressa toda a sua ambiguidade através dos acontecimentos presenciados pelo protagonista.

“O Menino e a Garça” Divulgação/Studio Ghibli

Os cenários de natureza do Studio Ghibli são sempre um deleite, mas em O Menino e a Garça, Hayao Miyazaki parece atingir seu ápice ao desenhar cenários fabulosos de uma natureza exuberante, que remete a obras como Meu Amigo Totoro, Princesa Mononoke e O Castelo Animado.

O desfecho traz um Miyazaki mais otimista, que através de sua profundidade, nos dá um vislumbre da beleza do desconhecido, que nos incentiva a seguir em frente, de cicatrizar as feridas do passado, abraçar as dores pra que elas se transformem em lições valiosas de amor, amizade e respeito.

O mais recente longa do Studio Ghibli definitivamente merece ser apreciado nos detalhes e sem pressa, valendo com certeza a mais de uma ida ao cinema pra conseguir captar as camadas de significado e admirar toda a beleza da narrativa, que só a mente e o traço à mão de Hayao Miyazaki podem trazer à vida com tanta maestria.

O Menino e a Garça está em pré-estreia em um número limitado de cidades brasileiras, tendo sua estreia nacional no dia 22 de fevereiro, dublado e legendado.